
Minha opinião
Na minha opinião, o problema das intoxicações por metanol em bebidas no Brasil é recorrente há mais de 25 anos e nunca foi efetivamente resolvido, esses episódios continuam acontecendo diariamente em diferentes cantos do país, mas só ganham visibilidade quando surgem em forma de “surtos”, com várias vítimas concentradas em poucos dias.
Nesse momento, a mídia cobre o caso com intensidade, mas em uma semana o assunto é colocado de lado, esquecido e arquivado.
O que mais preocupa é a ausência de jornalismo investigativo que vá a fundo, busque responsabilidades e pressione por soluções definitivas, falta acompanhamento contínuo, com apuração séria sobre como essas bebidas chegam ao consumo, quais redes criminosas estão por trás e por que a fiscalização não consegue impedir.
Enquanto não houver esse tipo de pressão e responsabilização, o ciclo de tragédias tende a se repetir indefinidamente.
Introdução
O metanol é um álcool industrial, incolor e inflamável usado como solvente, anticongelante e combustível. Diferentemente do etanol (o álcool encontrado em bebidas), o metanol é metabolizado no organismo em formaldeíde e ácido fórmico, substâncias extremamente tóxicas que podem causar perda de visão, convulsões e morte mesmo em pequenas doses
Intoxicações ocorrem quando bebidas alcoólicas são adulteradas com metanol ou quando solventes industriais são ingeridos propositalmente. A ingestão acidental geralmente ocorre em contextos de bebida clandestina ou falsificada, em que criminosos substituem o etanol por metanol para reduzir custos ou disfarçar produtos de origem ilegal. Por ser inodoro e ter sabor semelhante ao etanol, as pessoas não percebem a contaminação e só buscam atendimento quando surgem sintomas como confusão mental, mal‑estar, dor abdominal e, em casos graves, cegueira.
Histórico no Brasil
1992 – Diadema (SP)
Os primeiros grandes relatos de intoxicação por metanol no Brasil ocorreram em 1992, quando frequentadores de uma danceteria em Diadema (Grande São Paulo) consumiram uma bebida conhecida como bombeirinho (vodca com groselha). Cerca de 160 pessoas apresentaram sintomas como dor de cabeça, náuseas e problemas visuais; quatro pessoas morreram e outras 28 ficaram internadas. O Instituto Adolfo Lutz detectou que a bebida estava contaminada com metanol, o que levou ao recolhimento do lote e à abertura de investigações sobre falsificação de bebidas.
1999 – Bahia
Em 1999, 35 pessoas morreram em dez cidades baianas após beberem cachaça contaminada com metanol. Investigações mostraram concentrações de metanol de 24,84% e mais de 450 pessoas ficaram hospitalizadas. Este caso levou a uma mobilização estadual para fiscalizar alambiques clandestinos e reforçar o controle sobre bebidas artesanais.
2023 – População em situação de rua
Entre 2022 e o primeiro semestre de 2023, o Centro de Informação e Assistência Toxicológica (Ciatox) de Campinas notificou vários casos de intoxicação por metanol ligados à ingestão deliberada de combustível ou álcool adulterado em postos de gasolina, muitas vezes por pessoas em situação de rua ou em extrema vulnerabilidade Em um pico registrado em 2023, 14 pessoas nessa condição foram intoxicadas.
2025 – Surto em São Paulo
No fim de setembro de 2025, foi identificado um surto inédito em São Paulo. Em apenas poucos dias, dez casos de intoxicação por metanol relacionados ao consumo de bebidas destiladas em bares foram confirmados, com três óbitos. As vítimas haviam consumido gin, whisky, vodca e outras bebidas supostamente lacradas. O Ministério da Saúde ativou o Sistema de Alerta Rápido (SAR) e orientou que todas as unidades de urgência e emergência seguissem protocolo de notificação para casos suspeitos.
Relatórios oficiais apontam que esses casos diferem dos anteriores porque não envolvem população em situação de rua. A Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas observou que a contaminação provavelmente tem origem criminosa e que o metanol utilizado pode ter sido desviado do crime organizado.
Outros incidentes relacionados
Cerveja Backer (2020) – Embora não envolva metanol, vale lembrar o caso da cervejaria Backer em Minas Gerais, quando 29 pessoas foram intoxicadas por dietilenoglicol devido a vazamento em tanques de produção; dez morreram e 19 ficaram com sequelas graves.
Bahia (1999) – O mesmo ano de 1999 marcou o maior surto brasileiro de contaminação por metanol, citado acima.
Casos Recorrentes na América Latina
Colômbia (2022)
No final de 2022, a Secretaria de Saúde de Bogotá confirmou 16 mortes e 28 pessoas hospitalizadas por consumo de bebidas adulteradas (marcas Rey de Reyes, Cabañita e Old John). Testes detectaram metanol nas amostras de bebidas. O problema já era recorrente: o Instituto Nacional de Saúde colombiano relatava que, entre 2008 e 2015, 32 pessoas morreram por intoxicação com metanol e, em junho de 2020, as mortes já somavam 26 [elpais.com]. As autoridades associaram a ocorrência de surtos a feriados e festas, quando aumenta o consumo de licores baratos e clandestinos.
Costa Rica (2019‑2021)
A Costa Rica enfrentou repetidos surtos de licor adulterado com metanol. Em agosto de 2019, 25 pessoas morreram por envenenamento. Em 2020, o Ministério da Saúde registrou 92 casos de intoxicação; 48 das vítimas morreram. As mortes ocorreram em cinco das sete províncias do país, e as investigações levaram à apreensão de bebidas suspeitas.
No início de 2021, o governo contabilizava sete casos suspeitos, dos quais seis resultaram em morte. O Ministério da Saúde informou que a costa norte (Upala) e a região central (San Pablo de Heredia) concentravam as ocorrências e que, desde 2019, o país registra casos de metanol adulterado.
Outras ocorrências na América Latina
El Salvador (2000) – 122 pessoas morreram devido a bebidas de baixa qualidade adulteradas com metanol; o governo decretou proibição de venda de licor por dez dias.
Peru (2022) – Em outubro de 2022, 54 pessoas morreram em Lima após consumir vodca com sabor de fruta adulterada com metanol obtido de fluido de para-brisa.
Ocorrências na Europa e Ásia
Europa
Itália (1986) – O escândalo do vinho italiano contaminado com metanol resultou em 23 mortes e dezenas de casos de cegueira en.wikipedia.org. O caso levou à introdução de regras mais rigorosas de produção e inspeção de vinhos na União Europeia.
Estônia (2001) – Em Pärnu, 68 pessoas morreram e 43 ficaram com sequelas permanentes ao consumir bebida produzida com metanol roubado en.wikipedia.org.
República Tcheca/Polônia (2012) – 38 pessoas morreram na República Tcheca e quatro na Polônia por consumo de bebidas destiladas adulteradas en.wikipedia.org. O governo tcheco proibiu temporariamente a venda de todas as bebidas com teor alcoólico superior a 20% durante a investigação.
Irlanda (2014) – Dois homens morreram em County Donegal após beberem poitín (um destilado caseiro) com 97% de metanol en.wikipedia.org.
Laos (2024) – Seis turistas estrangeiros morreram e vários ficaram hospitalizados após consumir bebida adulterada em Vang Vieng. As autoridades prenderam 11 funcionários de um hostel e o caso levou a alertas de viagem en.wikipedia.org.
Ásia
A intoxicação por bebidas clandestinas é frequente na Índia, onde o chamado moonshine (álcool caseiro) é produzido fora do controle sanitário. Segundo compilação de mórbitos, mais de 2.000 pessoas morreram no país nas últimas três décadasen.wikipedia.org. Dentre os principais surtos:
2019: mais de 100 pessoas morreram nos estados indianos de Uttar Pradesh e Uttarakhand por consumir licor clandestino en.wikipedia.org.
2022: dezenas de mortes em Gujarat devido a bebidas adulteradas en.wikipedia.org.
2024: tragédia de Kallakurichi, estado de Tamil Nadu. Pelo menos 57 pessoas morreram após ingerir arrack (bebida destilada local) produzida com metanol vencido; o produto foi desviado de uso industrial por uma quadrilha de contrabandistas onmanorama.com.
Vários outros surtos listados na literatura, incluindo a 2012 Sangrampur tragedy e episódios recorrentes em Assam, Odisha e Mumbai en.wikipedia.org.
Durante a pandemia de COVID‑19, o Irã registrou quase 300 mortes depois que boatos sugeriram que o consumo de metanol poderia prevenir a infecção en.wikipedia.org.
Outros Continentes
El Salvador (2000) – 122 mortes devido a bebidas ilegais adulteradasen.wikipedia.org.
Malásia (2018) – 45 pessoas morreram ao consumir licor falso com concentração de metanol 50 vezes maior que o permitidoen.wikipedia.org.
Líbia (2013) – Ao menos 51 pessoas morreram em Tripoli, onde o consumo de bebidas alcoólicas é proibido e a produção clandestina usa solventes industriaisen.wikipedia.org.
Nigéria (2015) – 66 pessoas morreram em Rivers State, no sul do país, ao consumir ogogoro (destilado local) contaminadoen.wikipedia.org.
Fatores que Favorecem a Recorrência
Mercado clandestino e regulação frágil – Muitos surtos ocorreram em regiões com fiscalização insuficiente de bebidas alcoólicas. Produtores clandestinos substituem ou diluem o etanol por metanol para reduzir custos. O acesso fácil a solventes industriais e a ausência de rastreabilidade das garrafas aumentam o risco, como relatado pelo Ministério da Justiça brasileiro agenciabrasil.ebc.com.br.
Picos sazonais – Na Colômbia, as ocorrências se intensificaram durante festas de fim de ano elpais.com. Em outros países, como a Índia, surtos estão ligados a datas comemorativas ou restrições ao consumo de bebidas legais.
Desinformação – Durante a pandemia de COVID‑19 no Irã, falsas afirmações de que o metanol poderia matar o vírus levaram à ingestão deliberada, resultando em centenas de mortes en.wikipedia.org.
Pobreza e vulnerabilidade – Indivíduos em situação de rua ou com baixa renda consomem álcool clandestino ou combustível por ser mais barato. O Ciatox registrou que até 2023 a maior parte das intoxicações por metanol em São Paulo estava associada à população de rua e ao consumo de álcool adulterado em postos de gasolina agenciabrasil.ebc.com.br.
Padrões Observados e Análise
Recorrência ao longo do tempo: desde 1980 existem relatos de surtos de metanol em diversos países. O mapa de ocorrências mostra que, após grandes tragédias (Bahia em 1999, Itália em 1986, República Tcheca em 2012), as autoridades reforçam a fiscalização, mas o problema reaparece anos depois em outra região ou sob nova forma.
Geografia diversificada: casos estão espalhados por América Latina, Europa, Ásia e África, indicando que a contaminação não é exclusiva de países de baixa renda. Entretanto, a maior parte das mortes ocorre em países com forte mercado ilegal de bebidas e fiscalização precária.
Fatores sociais e econômicos: a pobreza e a busca por bebidas baratas estão associadas a muitos surtos. Além disso, restrições legais à venda de bebidas, como durante a pandemia ou em países muçulmanos, incentivam a produção clandestina.
Adulteradores profissionais: investigações recentes em São Paulo sugerem que o metanol usado para adulterar bebidas pode ser o mesmo desviado por organizações criminosas para combustívei sen.wikipedia.org. Isso indica uma ligação entre crime organizado e falsificação de bebidas.
Conclusão
O histórico de intoxicações por metanol evidencia que se trata de um problema cíclico que desaparece e reaparece conforme mudam os contextos econômico‑sociais e as táticas do mercado ilegal. No Brasil, surtos isolados em 1992 e 1999 foram seguidos por um longo período de baixa incidência, mas em 2023 e 2025 a contaminação ressurgiu, desta vez associada a bebidas destiladas vendidas em bares agenciabrasil.ebc.com.br.
Globalmente, a contaminação por metanol continua a causar centenas de mortes a cada década, com surtos recentes em Costa Rica, Colômbia, Índia e Laos. A recorrência do problema está ligada ao mercado clandestino, à desinformação e à falta de fiscalização eficaz.
A prevenção depende de medidas sustentadas: controle de alambiques e destilarias, rastreabilidade das garrafas, campanhas de conscientização sobre os riscos do metanol e reforço na assistência social para população vulnerável. Apenas com vigilância permanente e cooperação entre governos e setor privado será possível reduzir a reocorrência desse problema.